A espera
As contrações começaram do domingo, sete, para a segunda, oito de outubro. Mas o trabalho de parto, a preparação para o parto em si, vieram de muito antes. Começaram no momento em que tive de procurar um obstetra quando, ainda em janeiro, soube que estava grávida.
Foi aí que começou a novela. O primeiro médico nos disse que não atendia pacientes obstétricos pelo meu plano, que pagava mal e ainda por cima tinha muitos usuários e poucas vagas disponíveis nos hospitais. Começamos a ficar assustados.
A tal obstetra não era exatamente ruim: deu o telefone de casa, o celular, se deixava incomodar a qualquer hora. E isso foi essencial pra mim porque descobrimos, na primeira ultrassom, que eu estava com um pequeno descolamento de placenta. Acabei obrigada a ficar em casa, tomando doses maciças de progesterona, faltando ao trabalho e sem receber meu salário por mais de um mês, porque o INSS não marcava a perícia. Tempos de liseu, tempos de estresse total. Leo em casa tomando conta de mim, e eu que inicialmente não tinha aceitado bem a idéia de uma gravidez, descobrindo que que queria muito que esse bebê vingasse. Foi só aí, por ironia do destino, que eu comecei a contar à maioria dos conhecidos que estava grávida. Foi só então que comecei a pensar num nome pro bebezinho e torcer pra que ele ficasse forte e saudável dentro de mim.
Superado o problema do descolamento, e após ter assumido para mim mesma que desejava muito ter esse filho, comecei a entrar em tudo que foi comunidade do Orkut sobre gravidez e amamentação. Entrei em contato com minha amiga carioca Ingrid Lotfi, que faz parte de um grupo que eu freqüentava no Rio, os Sambamantes, e também é doula e moderadora de uma lista de discussão via emails chamada Parto Nosso. Ingrid me passou alguns telefones das meninas ligadas à rede Parto do Princípio – mais especificamente, de Marina, de Julia e de Daniela. Eis então que um dia, saltei de pára-quedas numa reunião do grupo para casais grávidos Boa Hora, lá na Várzea.
Acho que a gestação foi um período bem difícil pra Leo, também. Além de estar numa cidade nova, recém-chegado e recém-casado, tinha que enfrentar o fato de estar sem emprego e lidando com uma mulher pululando de hormônios e insegurança. Ele engordou mais de dez quilos e teve desejos alimentares estranhos. A referência de gravidez que tinha era a da mãe, que quase morreu de eclampsia quando ele tinha dez anos. Tinha um medo absurdo de que eu saísse sozinha, fizesse esforço, passasse mal. Um dia, explodiu chorando e confessou com todas as letras seu medo de que eu viesse a morrer no parto. Talvez por isso preferiu, durante muito tempo, que eu fizesse uma bendita cesárea eletiva e bem programadinha; talvez por isso fosse tão resistente à idéia de freqüentar o grupo de casais – alguns dos quais insistiam na idéia de que tivéssemos o bebê em casa. Como era no horário em que eu trabalhava dando aulas, fui a poucas reuniões – talvez cinco, seis? Destas, ele foi a umas três, se muito. Sempre reclamando que era longe e que eu não devia ficar pegando ônibus, grávida.
Desisti de trocar de obstetra porque, no dia seguinte, tive uma dorzinha nas costas e, ao recorrer à emergência de um hospital, a médica de plantão achou por bem fazer um “toque” em mim. O exame foi feito com tal delicadeza que passei três dias sangrando. A dor foi tanta e o medo de abortar foi tamanho, que minha pressão subiu instantaneamente – motivo pela qual a tal profissional me recomendou tomar umas injeções para maturar os pulmões do bebê, para prevenir-se contra a minha “eclampsia”. Desesperada, tentei falar com a nova médica por telefone, sem sucesso. No dia seguinte – era uma terça – ela atendeu, meio mal-humorada, e disse que só estaria disponível para me ver, se fosse o caso, na sexta seguinte. Prontamente, liguei para a obstetra anterior, que me tranqüilizou e atendeu de uma forma mais adequada.
Ou seja, voltei à estaca zero...
A obstetra que ficou me acompanhando prosseguiu fazendo um trabalho meio terrorista, minando minha autoconfiança. De acordo com ela, eu seria um caso complicadíssimo – obesa, gastroplastizada, primípara com mais de 30 anos. Para reforçar, pessoas de minha própria família, sem nenhuma formação médica e com boa intenção mas péssimo resultado, vinham me dizer que eu só poderia parir através de cesárea, por conta dos “meus problemas”. Uma delas chegou a perguntar se eu não iria ligar as trompas após Antonio nascer, uma vez que – em sua visão – era muito arriscado eu ter filhos.
Mas, no fundo, eu não aceitava que as coisas se resolvessem assim.
Continuei freqüentando o Boa Hora e participando das comunidades no Orkut, e quando as pessoas insistiam que eu trocasse de médico, ficava irritada: como faria isso, sem dinheiro? Li um comentário em algum lugar mensurando os custos de um parto domiciliar com um médico famoso, em São Paulo, e o preço ultrapassava dez mil reais: sem chance pra mim. Comecei a internalizar a idéia de que, “um dia”, “no próximo filho”, “quando tivesse me planejado e poupado pra isso”, teria um VBAC (parto normal após cesárea). A sugestão que alguns me davam de que fosse tentar parir num hospital público também me desagradava, e após a última greve que houve aqui em Pernambuco, a sensação foi intensificada quando passaram na tevê várias entrevistas com mulheres que em pleno trabalho de parto não conseguiam vaga em lugar nenhum.
Comentando com Dan, ela me sugeriu novamente que procurasse Melania e Leila Katz. Consegui o contato de Melania no Orkut, deixei um recado pra ela e marquei uma consulta. Quando Leo soube, falou tanto que era absurdo gastar com um outro médico quando a gente tinha plano de saúde, que voltei do meio do caminho e deixei Mel esperando, sem explicação.
Dan foi insistente, e algum tempo depois acabei marcando com Leila, “só pra ouvir dela que o meu caso era de cesárea mesmo”. Leo foi comigo, meio a contragosto, após insistência de Leila, que disse ser muito importante a presença e apoio do marido – e ele, que havia estado comigo em cada consulta e cada exame até então, não poderia mesmo estar ausente.
Ela ainda conversou sobre como seria possível parcelar o parto, dentro das minhas condições – e o valor, graças a Deus, não era nem perto do que eu temia. De repente, comecei a ver que seria possível, sim, ter meu filho do jeitinho que eu queria.
Leo foi embora meio calado, ruminando o encontro.
Saí calada, fervendo de ódio. A redenção se deu no lado de fora: Leo estava, finalmente, com tanta raiva quanto eu. Nunca mais pusemos os pés no consultório dessa “profissional”, que nos aguarda até hoje para “marcar o parto”. Nesse dia, eu cantava por dentro: tudo o que queria era que Leo se aliasse a mim, nesse projeto.
Só que não tive tempo de relaxar nem ficar feliz: nessa mesma semana, descobri que meu plano de saúde havia descredenciado o único hospital próximo de minha casa que tinha alguma qualidade no atendimento. Ou eu ia parir em Olinda, bem distante daqui, ou me sujeitava à tal maternidade ruim que a médica anterior queria que eu utilizasse. Corri imediatamente para uma entidade chamada Aduseps - Associação de Defesa dos Usuários de Planos de Saúde (sim, isso existe), contactei os advogados de lá, instauramos uma ação e conseguimos, após alguns dias, uma liminar obrigando o plano a pagar todas as custas do parto no hospital que eu queria. Isso não foi feito sem stress, numa época da gravidez em que tudo que eu queria era descansar e dar os últimos retoques no quartinho do nenê. Enfim, com 39 semanas e pouco, a liminar estava em minhas mãos e nada mais restava que não aguardar o dia D.
Pois no domingo, sete de outubro, com 40 semanas de gestação completas e após alguns alarmes falsos mal-interpretados pela novata no assunto, começaram realmente as primeiras contrações. Era madrugada, e cutuquei Leo. “Minha barriga está doendo”. Calado estava, calado ficou. “Leo, tá doendo”, insisti. “Já estourou alguma coisa?”, quis saber ele. Diante da negativa, virou de lado e dormiu. E eu fiquei até de manhã, tentando contar o período entre as contrações, esperando dar uma hora decente pra ligar e avisar a Dan, Leila, Melania e Thay, que também se ofereceu para ser minha doula.
A chegada
Medo de não dar conta.
Meu medo era reflexo de tudo que me foi dito ao longo da gravidez, e por mais que racionalmente eu soubesse que não era verdade, meu inconsciente acreditava que eu era imperfeita e sem condições de parir uma criança.
Senti uma falta enorme, aguda, de minha avó e minha mãe, sabendo que aquele momento era uma passagem para uma condição diferente, e que não teria comigo a presença física delas. Minha mãe me disse uma vez que jamais deixaria um filho dela sozinho, sentindo medo... Mas onde estava ela agora, de onde eu ia tirar forças?
Comecei a gritar alto, até ficar rouca, e creio que muita gente no hospital achou que eu estava morrendo, reforçando a impressão de que parto normal, e ainda por cima “a cru”, é algo excruciante. Só depois, nas fotos, vi a cara preocupada da pediatra de plantão, que certamente não tem muita vivência neste tipo de parto...
Os berros eram mais de pânico que de dor, mas eu não sabia disso naquele momento. Curioso é que, em momento nenhum, pedi ou achei que precisasse de anestesia.
Uma hora alguém disse que a cabecinha dele estava aparecendo, e eu não acreditei (!). Tentaram me mostrar com um espelho, e eu já meio desesperada com a dor das contrações e do tal “círculo de fogo”, não consegui ver nada. Até que tiraram uma foto e vieram me mostrar. Foi o suficiente para eu focar na expulsão e, algumas contrações depois, meu filho pulou de dentro de mim, escorregadio e todo sujinho de vérnix. Eram quatro e doze da tarde do dia nove de outubro de 2007.
Eu, feito bicho, segurei meu filhotinho e fiquei cheirando e beijando aquela coisinha minúscula por um tempo que não sei precisar. Não contei os dedos dele para ver se estava tudo certo, como as pessoas dizem que as mães fazem. Eu só queria olhar a carinha dele, senti-lo perto do meu coração.
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